O Hospital Não é o Céu: Discernindo o Pensamento Secular na Medicina

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O exercício da medicina está repleto de impressões do amor de Deus. Momentos em que enfermeiras tratam cuidadosamente de uma ferida ou seguram a mão de uma pessoa que está morrendo, refletem nosso mandato de amar nosso próximo como a nós mesmos (Lc 10.27). Médicos que trabalham durante uma noite toda para salvar uma vida abraçam o chamado para dar a vida uns pelos outros (1Jo 3.16). Estes pungentes ecos do Evangelho podem nos induzir a equiparar a medicina ao pensamento cristão e ter a expectativa de que a bioética se mantenha firme junto à igreja contra as ondas da cultura popular.

Mas às vezes, a medicina espelha pouco daquilo que realmente é bom ou amável. Embora a capacidade de curar seja um dom de Deus, a medicina é tão corruptível quanto qualquer outra esfera da vida após a queda. À medida que fazemos nosso trabalho no hospital, necessitamos ter discernimento, com as Escrituras em nossas mentes e orações em nossos corações.

Definições de Valor
Um exemplo quando eu era residente, atormenta minha consciência. Uma mulher com uma gravidez de quase 23 semanas chegou ao hospital com uma doença aguda. Enquanto os médicos cuidavam dela, ela pediu para fazerem um aborto. Ao saber de seu pedido, sua família entrou no quarto como uma multidão de pessoas enlutadas, com as cabeças baixas, os rostos cheios de pesar. Alguns choravam. Outros se ofereceram para adotar a criança. Todos imploravam para ela não abortar o bebê, que dava chutes dentro dela, seus membros já totalmente formados, seu coração dançando em vigoroso ritmo. Enquanto eles imploravam, ela olhava para um canto, com os olhos eventualmente cheios de lágrimas.

A cena foi de partir o coração. Contrastava também nitidamente com a resposta de sua equipe de atendimento. Em vez de se sentar ao lado dela para explorar as avenidas escuras em que sua mente vagava, ou para se aprofundarem nas razões pelas quais o aborto lhe parecia a única solução, eles temiam que ela não se recuperasse de sua doença a tempo para que o aborto pudesse ser feito legalmente. A lei de seu estado permitia a realização do procedimento até as 23 semanas e 6 dias. Eles a instavam que se desejasse um aborto, ela necessitava se recuperar rapidamente, antes que a criança se tornasse magicamente uma pessoa quando chegasse a 24 semanas. Antes daquele dia, seu direito ao livre-arbítrio suplantava o direito de sua criança à vida. Os direitos de seu bebê viver, amar e realizar seu propósito no mundo advinham não de sua inerente dignidade como portador da imagem de Deus, mas de ser desejado ou não. Mas, de acordo com a lei estadual, tudo isto mudaria em um único dia. O tempo estava correndo.

Este exemplo inquietante nos dá um vislumbre da brecha entre o ensino bíblico e a exercício da medicina. Ser ou não uma pessoa, depende de pontos de tempo arbitrários. O direito de um adulto de se autogovernar supera o direito do nascituro de viver. A bioética moderna defende a autodeterminação como um bem supremo, ao invés de ser uma bênção a ser exercida no serviço a Deus. Ela valoriza a liberdade individual, mas a extirpa de seus propósitos piedosos. O resultado é um sistema que, em inúmeras circunstâncias, reflete a graça de Deus, mas que também pode se desviar dos princípios das escrituras.

A medicina moderna é um dom de Deus. Mas não é uma instituição cristã.

Raízes Seculares
A separação da medicina do Evangelho data-se de seus primórdios. Embora ao longo dos séculos as igrejas e mosteiros tenham acolhido os doentes, a bioética moderna tem suas origens não no pensamento cristão, mas na antiguidade e no Iluminismo. Hipócrates, amplamente elogiado como o “pai da medicina moderna”, começou seu famoso juramento com a frase “Juro por Apolo, o curador”, seguido por uma litania de adorações aos deuses gregos. Estudantes de medicina ainda recitam seu juramento hoje como um rito de passagem, com a cabeça abaixada em reverência à profissão.

A bioética moderna se desenvolveu séculos depois de Hipócrates, quando o abuso desenfreado e o paternalismo na medicina atingiram seu auge. Na década de 1970, a exposição do terrível estudo de Tuskegee provocou indignação nacional quando soubemos que, durante quatro terríveis décadas, o Serviço de Saúde Pública dos EUA financiou pesquisas sobre a sífilis em afro-americanos indigentes, sem seu consentimento. A crise estimulou um movimento para definir a prática médica ética, culminando no estabelecimento de quatro princípios que se tornariam os pilares da ética médica: não maleficência, benevolência, respeito à autonomia e justiça. Thomas Beauchamp e James Childress, os filósofos americanos que delinearam estes princípios, basearam-se fortemente na estrutura de autonomia de Immanuel Kant, bem como de um apelo à moralidade comum — em outras palavras, a filosofia de que certos princípios são tão amplamente aceitos e evidentes que se tornam universais.

Podemos atribuir muito das virtudes da assistência médica, à ênfase de Beauchamp e Childress sobre a dignidade humana. Mas as Escrituras nos advertem sobre os limites da sabedoria humana (1Co 1.25) e nos aconselha a confiar em Deus e não em nosso próprio entendimento (Pv 3.5-6). Visto que os princípios de Beauchamp e Childress se baseiam na unanimidade pública, e não na autoridade divina, é de se esperar que suas manifestações se alterem e se distorçam com o tempo. Um sistema médico baseado no consenso da sociedade, ao invés de um embasamento firme na Verdade, se curvará aos ventos de mudança.

Hoje em dia, nossa cultura tem maior estima pela realização de desejos individuais do que pelo evangelho da graça. A idolatria da autodeterminação na medicina parece inevitável.

A Idolatria da Autodeterminação
De todos os quatro princípios de Beauchamp e Childress, o respeito pela autonomia alcançou a primazia no exercício da medicina. Também descrito como o direito à autodeterminação, este princípio visa salvaguardar os pacientes contra a exploração e, nos anos 70, representou uma divergência crucial em relação aos horrores do paternalismo. Na superfície, isto é paralelo aos valores cristãos. Todos nós temos valor intrínseco e dignidade como portadores da imagem de Deus (Gn 1.26), e Deus nos concede uma medida de liberdade como mordomos de sua criação (Gn 2.15,19).

No entanto, a Bíblia diverge da ética médica secular com relação ao propósito de nossa autonomia dada por Deus. Do ponto de vista bíblico, Deus nos dá liberdade para que possamos viver vidas que apontam para seu caráter; nossa liberdade vem com a expectativa de que nós a exercitemos para a Sua glória. Paulo escreveu “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3.17). Embora sejamos livres em Cristo, nossa conduta necessita estar sujeita à cruz (1Co 6.19-20).

Em contraste, a liberdade desvinculada de seu contexto bíblico se afasta de Deus e vai em direção ao nosso ego. O direito de escolha reina supremo, independentemente de nossas escolhas refletirem ou não nossa identidade em Cristo. O objetivo principal da vida se transforma de servir a Deus, para a satisfação de desejos pessoais. A liberdade se torna um bem supremo, um fim em si mesma, ao invés de ser um veículo para glorificar o Senhor.

Já vimos isto antes e sabemos aonde isto leva. A autonomia sem Deus primeiro produziu frutos tenebrosos no jardim, quando Adão e Eva valorizaram a autodeterminação mais do que a aliança com o seu gracioso Senhor (Gn 3). Isto tem atormentado a humanidade desde então, nos seduzindo a idolatrar o fruto de nossas próprias mãos, ao invés de reverenciar nosso Criador (Is 2.8; Je 1.16; Rm 1.21-22).

Os hospitais são tão propensos a esta subversão quanto qualquer outro canto da Terra. Na medicina, a autonomia não-bíblica associa aspectos do popularismo e do transumanismo no cuidado dos doentes. A linguagem técnica desumaniza bebês nascituros, a menos que sejam desejados. Defensores alegam que o suicídio assistido é um direito humano. Pacientes com câncer que expressam preocupações religiosas recebem pouco apoio no hospital e, quando médicos respondem, utilizam gestos humanitários — segurando uma mão, gastando mais tempo para conversar — como se fossem cuidados espirituais. Tão absoluta é a divisão entre o cristianismo e a prática médica que, em seu excelente livro Hostility to Hospitality [Hostilidade à Hospitalidade], os médicos Michael e Tracy Balboni caracterizam a medicina americana como “espiritualmente doente”.

Discernimento nos Meandros dos Hospitais
Tudo isto não significa que devemos desconfiar dos médicos ou nos afastar dos remédios modernos com os quais Deus nos abençoou. Ao contrário das representações na mídia de médicos gananciosos e sedentos de poder, a maioria dos médicos exerce a medicina com uma paixão genuína por ajudar os outros, muitas vezes com grande custo pessoal. E a medicina moderna literalmente salva vidas. Em seus melhores momentos, ela reflete a misericórdia e o amor pelo nosso próximo, o qual Cristo nos conclama a amar como seus discípulos. A medicina é uma bênção do Senhor e devemos aceitá-la com sincera gratidão

Mas o hospital está longe de ser o céu. Ao destrincharmos suas complexidades, as raízes seculares da medicina nos alertam para termos discernimento. Não podemos colocar cegamente toda nossas esperanças no sistema médico ocidental, assim como não devemos idolatrar o governo ou a economia. Ter este entendimento é especialmente crítico quando consideramos uma doença aguda, quando uma ameaça à vida pode nos privar de clareza para desvendar biblicamente os dilemas éticos. O tumulto da vida pode não nos dar espaço e tempo para refletirmos sobre questões médicas em nosso próprio ritmo. Necessitamos definir cuidadosamente nossos valores e os princípios que guiam o discipulado cristão antes que a calamidade nos atinja.

Felizmente, nossa esperança insignificante nos sistemas danificados deste mundo murcha diante da glória de nossa maior e mais firme esperança. Na cruz, encontramos uma certeza do amor de Deus que supera todas as parcas filosofias de nossas próprias mentes. E quando Cristo voltar, o debate sobre a ética médica se desvanecerá em irrelevância, quando Jesus eliminar a presença da morte, aperfeiçoar nossos corpos frágeis e anular a necessidade de medicina.

Traduzido por Giovanna Braz dos S. Garotti

 

Kathryn Butler (Médica pela Faculdade de Médicos e Cirurgiões da Universidade de Columbia) é cirurgiã de traumatologia e cuidados intensivos. Recentemente abandonou a prática clínica para educar seus filhos em casa. Ela tem escrito para Desiring God e Christianity Today, e seu livro sobre cuidados no fim da vida visto por uma lente cristã, “Between Life and Death” [Entre a Vida e a Morte], será lançado em 2019 (Crossway). Ela escreve no blog Oceans Rise.

FONTE https://coalizaopeloevangelho.org/article/o-hospital-nao-e-o-ceu-discernindo-o-pensamento-secular-na-medicina/

 


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