‘Metade é de casados’: a clínica especializada em prevenir pedofilia em SP

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Sentado à mesa, um jovem médico com o desejo de trabalhar em uma área pouco explorada pela psiquiatria no Brasil.

No lado oposto, em busca de tratamento, sentam-se pessoas com o desejo criminoso de manter relações sexuais com crianças ou adolescentes, o chamado transtorno pedofílico.

Foi assim que Danilo Baltieri, de 51 anos, fundou há 20 anos o ambulatório ABCSex, na Faculdade de Medicina do ABC, na Grande São Paulo.

Em duas décadas, ele relata ter atendido mais de 2.000 pessoas, em terapias individuais ou em grupo.

Em entrevista à BBC News Brasil, o médico afirma que metade delas é casada e, em geral, é levada ao ambulatório pelo próprio filho ou companheiro.

O médico conta que, no início, sofreu muita resistência e preconceito por abrir a clínica, principalmente pela imprensa. O argumento era de que ele, de certa maneira, apoiava a pedofilia. Mas hoje seu trabalho é reconhecido como um importante serviço de prevenção a crimes.

“Eu já ouvi muitas vezes falarem que ‘o professor Danilo passa a mão na cabeça de pedófilo’. Não! O professor Danilo trata aqueles com pedofilia, enfatizando a necessidade de se evitar qualquer tipo de reincidência criminal ou qualquer tipo de abuso sexual contra crianças. Não estamos em queda de braço com a polícia”, afirma.

“Nós estamos dando as mãos um para os outros, cada um dentro do seu papel. Um dentro do tratamento, na contenção, e o outro na repressão. É similar ao consumo de drogas. Ele anda de mãos dadas com a repressão. Se houver queda de braço, eu estou fora.”

Danilo Baltieri, no entanto, afirmou que nunca ouviu posicionamentos contrários a esse tipo de tratamento vindo de outros médicos.

“Eu sempre recebi mensagens de apoio, sempre evidenciando a coragem. Eu encontrei mais resistência da mídia. A imprensa sempre foi muito mais perniciosa em relação a isso do que foi favorável. Hoje, hoje ela é mais responsável e tem se tornado cada vez mais responsável no sentido de que ninguém está passando a mão na cabeça de ninguém”, diz.

Ele conta que as críticas diminuem quando ele para que os críticos se coloquem no lugar das vítimas.

“Quando eu olho para o jornalista e digo: o que eu estou fazendo é proteger o seu filho, o seu sobrinho e não apenas melhorar a qualidade de vida do indivíduo que tem o transtorno pedofílico, a coisa muda de figura”, relata.

Durante entrevista à BBC News Brasil, Danilo faz questão de esclarecer que é favorável à prisão desses criminosos.

“Nós não somos contra a pena de prisão. Pelo contrário, nós somos contra a falta de tratamento dentro e fora do sistema penitenciário. Nenhum especialista em agressões sexuais ao redor do mundo, e eu me incluo nesta pequena casta, é contra a pena de prisão”, diz.

Hoje, o crime de pedofilia não está previsto no Código Penal brasileiro. No entanto, a advogada criminal e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Priscila Pamela afirma à BBC News Brasil que outras tipificações já contemplam a violência sexual praticada contra crianças.

“Há estupro, violência sexual, divulgação de imagem de menor. Tudo isso já é contemplado. A diferença é que quando há uma criança envolvida, as penas são muito maiores porque são pessoas em situação de vulnerabilidade”, diz.

Ela diz, por exemplo, que a pena para estupro de um adulto é de 6 a 10 anos de prisão. Já em casos de esturpo de vulnerável, como crianças ou pessoas com deficiência, o período de reclusão é de 8 a 15 anos.

“A condição de resistência de um adulto em relação a uma criança é muito diferente. Até mesmo a concepção de que ela está sendo vítima de um crime é diferente de uma criança para um adulto, por isso é muito mais grave”, afirma Pamela.

Há projetos de lei que visam incluir especificamente o crime de pedofilia no código penal, mas, para a advogada, a legislação atual já é suficiente para punir os agressores.

“Não acho necessário porque as condutas previstas já são o bastante para a responsabilização. A gente já consegue identificar a conduta do pedófilo com a lei atual. Um homem que beija uma criança já comete um estupro e a gente já contempla isso na legislação. O que deve haver é uma aplicação da lei já existente, além de um trabalho de investigação e punição desses criminosos”, diz Priscila Pamela.

Rede de apoio

O ABCSex é o Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da disciplina de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC. Desde o dia 20 de abril de 2003, ele atende e trata “indivíduos com fantasias, atividades ou práticas sexuais intensas e recorrentes envolvendo crianças e pré-púberes menores de 13 anos”.

Em geral, segundo Danilo Baltieri, é uma população que vai até ele por conta própria. A clínica não recebe pacientes encaminhados pela Justiça, pois ele diz não ter parceria com o órgão.

“O supervisor sou eu, mas meu contrato não é de médico. Então, eu supervisiono esses médicos residentes em psiquiatria para poder fazer o atendimento a esses pacientes.”

Ao ser questionado como é feito o tratamento e quanto tempo ele dura, o médico afirma que esse é um acompanhamento permanente, como o de um dependente químico.

No entanto, ele diz que o investimento médico e psicoterapêutico pode ser modificado e amenizado à medida em que o paciente entra numa fase de estabilização. Para ele, a presença da família e de pessoas próximas é um fator determinante para o sucesso.

“Eu posso dizer para você que o tratamento funciona, desde que haja suporte da família e o interesse do próprio paciente em redimensionar suas escolhas. Não funciona sob coação. A coação ajuda no sentido de que o indivíduo sabe que não pode e que se ele fizer vai ter danos. Mas funciona à medida em que ele compreende isso e que o problema é que, se ele agir, vai ser prejudicial para ele e para uma criança para o resto da vida dela”, afirmou Danilo.

O médico afirma que as pessoas ao redor dos pacientes são como “os nossos olhos longe do ambulatório”. São elas que aconselham, alertam e evitam que eles tenham comportamentos que possam incentivá-los a alimentar esse transtorno.

Essa rede de apoio ainda é um termômetro que revela se o tratamento está surtindo o efeito desejado.

“Existem casos graves onde nós percebemos que o risco está muito alto. Nesse momento, fazemos a opção de internar esse paciente. Depois, temos a intenção de mudar as medicações e incluir mais membros da família nessa rede de proteção. Se nada der certo, enfim, fazemos uma denúncia. Na minha experiência nesses 20 anos de existência de um ambulatório de pesquisa, nós temos praticamente 0% de reincidência criminal dentre os pacientes em acompanhamento”, relata.

Danilo Baltieri explica que o tratamento não é voltado apenas para as pessoas que sofrem do transtorno, mas também para quem os acompanha, principalmente as esposas.

Essas mulheres, conta ele, frequentemente vão ao ambulatório para poder auxiliar e entender o transtorno mental que afeta os maridos, para que isso não se repita.

A maior parte desses pacientes, segundo o médico, “nunca tocou em criança e nem tampouco consumiu pornografia infantil. Mas têm medo de que isso aconteça, já que as suas fantasias masturbatórias são permeadas por pensamentos que envolvem crianças e adolescentes menores do que 13 anos de idade”.

Linha de ajuda na Suécia

Marco Scanavino, coordenador do Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e de Prevenção aos Desfechos Negativos Associados ao Comportamento Sexual do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP, diz que ambulatórios como esse são essenciais para prevenir novos crimes.

Ele conta que o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo atende casos de pessoas com compulsão sexual e que o acompanhamento favorece para que esses pacientes tenham equilíbrio, conforto e se afastem de pensamentos criminosos.

“Vamos imaginar que talvez as próprias pessoas que possam estar passando por isso também tenham a dúvida de que exista um tratamento. Por isso, muitas vezes elas não vão procurar ajuda. Então, há a possibilidade de ter um papel da saúde para ajudar e também prevenir. É muito importante”, afirmou.

Ele conta que durante uma visita em 2017 à clínica de sexualidade do Instituto Karolinska, na Suécia, ele presenciou o funcionamento de um projeto de ajuda às pessoas com transtornos sexuais. Trata-se de uma linha anônima para que essas pessoas pudessem ligar para pedir ajuda para uma equipe multidisciplinar de psiquiatria.

“Isso é algo claramente preventivo, que eles estavam fazendo para uma pesquisa, mas com função preventiva porque você cria uma janela para essas pessoas poderem pedir ajuda antes, ao invés de depois de terem sido pegas pela polícia. Esse é um tema muito complexo e sensível, mas no Brasil eu vejo um movimento favorável de maior aproximação entre os aspectos nas áreas da saúde e a área legal”, conta.

Para Marco Scanavino, o aumento de casos de violência doméstica na pandemia, envolvendo principalmente mulheres e crianças, acendeu um alerta na população.

“Tudo isso fez com que a sociedade ficasse um pouco mais preocupada com essa questão. Eu vejo um movimento positivo, mas que devemos ter uma melhoria de cuidados e prevenção para essas questões que são fundamentais, inclusive para a saúde das próximas gerações.”

O professor ressaltou, no entanto, que atende apenas pessoas que tenham fantasias, mas não cometam pedofilia. Caso isso ocorra, explica, o caso é denunciado às autoridades.

Mulheres pedófilas

No ponto de vista do médico, o machismo presente na sociedade leva parte da população a imaginar que apenas homens são pedófilos. Ele diz que um em cada 9 de seus pacientes são do sexo feminino. Ele diz que essa é a média mundial, mas que esse número pode ser ainda maior por conta da subnotificação de casos.

“Naturalmente, eu imagino que existe um pouco mais do que isso porque nos países ocidentais ainda existe a questão do machismo. Onde o menino pode experimentar precocemente sexo com a mulher, pois isso contribuiria para o indivíduo ser mais macho, uma crença totalmente errada”, afirmou.

Segundo o médico, metade dos pacientes que ele atendeu nessas duas décadas nunca chegou a flertar com uma criança, mas tem pensamentos pedofílicos. O principal deles é possuir conteúdo de pedofilia armazenado no computador ou celular.

Hoje, são atendidas dez pessoas às quintas-feiras no ambulatório localizado na Grande São Paulo. O maior gargalo para que mais pessoas recebam esse atendimento, conta ele, é a falta de financiamento.

Alerta aos pais

Com a vasta experiência lidando com pessoas que têm desejos sexuais por crianças e sabendo a origem do material que alimenta essas pessoas, Danilo Baltieri faz um apelo para que as pessoas tomem cuidado com as fotos publicadas.

“Não postem imagens de seus filhos nas redes sociais usando biquínis ou roupas íntimas, como cuecas ou calcinhas. Por mais inofensivas que elas possam parecer, estimulam a erotização infantil. Não exponha nenhuma criança pelada ou mesmo de roupas sumárias ao público. Não faça isso. Eu aviso isso há anos, mas as pessoas continuam a fazer. Nós temos mais ou menos uma estimativa de que 3% dos homens têm o transtorno pedofílico e estão de olho nessas crianças”, diz.

Para ele, os principais responsáveis pelo incentivo à pedofilia são cerca de 200 facções que atuam internacionalmente para adquirir e distribuir material de pronografia infantil.

“Esses grupos não apenas fazem a intermediação desse material, mas muitas vezes também sequestram crianças, as forçam a fazer sexo entre elas ou com adultos e filmam. Existe o distribuidor dessas filmagens, o vendedor online e isso ainda se encontra em dark web e deep web”, afirma.

“E ainda há esse conteúdo em sites abertos. Isso é um grande tapa na cara de pessoas como eu, que dedicaram uma vida a tratar os indivíduos que têm o transtorno pedofílico com a finalidade precípua de proteger as crianças. A internet é um grande vilão, mas os responsáveis pelas crianças também têm que estar em alerta porque as coisas não acontecem apenas com o vizinho.”

fonte https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpw98ww7edxo

 

 


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